Whats nosso de cada dia

Começou como uma brincadeira. Todos estavam usando, então eu quis experimentar. Foi bem fácil de conseguir: em dois cliques, ele estava na minha mão. Eu havia instalado o WhatsApp.

Parecia tão inofensivo. Era só um serviço para troca de mensagens. Eu já tinha usado outras coisas parecidas. Achei que essa plataforma não ia “bater” tão forte.

Já estava no Facebook, conhecia o Orkut, então sabia como funcionavam as redes sociais de modo geral, e não levou muito tempo pro meu organismo se adaptar a esta nova.

Sentia uma euforia enorme, poderia falar com qualquer pessoa do mundo inteiro, por todo o tempo que quiséssemos. Mas eu também sentia certa angústia quando minhas mensagens não eram visualizadas, ou certa ansiedade se deixasse de responder a alguém.

Me sentia mais conectado com quem estava longe a cada vez que eu usava um pouquinho. Falei com pessoas que já não via há muito tempo: estavam todos ali, na mesma vibe que eu, partilhando a mesma experiência mesmo que distantes.

Usávamos os chamados emojis para expressar nossos sentimentos. Eu dizia que estava chorando de rir, mesmo que não achasse graça no que foi dito e em meu rosto (real) não tivesse qualquer sorriso, ainda que meu rosto virtual, amarelo e levemente deformado, estivesse fazendo caras e bocas.

Fiz o mesmo para mostrar a língua, para oferecer frutas, para mostrar que estava tranquilo, preocupado, alegre ou com raiva: em só dois cliques eu enviava aquilo que não necessariamente estava sentindo, mas que queria que o outro pensasse que sentira.

Então surgiram os grupos. Começou tomando conta de toda a minha família, logo foi para antigos colegas de escola e, quando vi, eu já estava usando o Whats em grupos com um monte de desconhecidos.

As coisas começaram a ficar estranhas pela primeira vez. Nestes grupos, eu recebia muitas informações que sabia que eram falsas, mas vinham de pessoas que eu confiava e que achavam que estavam certas. Começou a haver muita discussão, muita gente se afastou, parece que o país inteiro se dividiu em dois a partir dos grupos de família que já não mais se entendiam: com um lado baseando as suas opiniões em informações falsas, manifestando o sintoma da confusão e, com o outro, perdendo a paciência para tentar explicar que era falso, dando vida ao sintoma da irritabilidade, ambos também presentes nos quadros relativos a dependências químicas.

Não demorou muito tempo para que todas as empresas passassem a usar também: do dia para a noite, adicionaram em suas fachadas, os seus “números de Whats”. Seus funcionários passaram a ter os seus próprios grupos para se comunicarem mesmo fora do expediente.

No primeiro momento, eu achei prático. Poderia fazer qualquer pedido para praticamente qualquer empresa, usando aquilo que eu achava a melhor forma de comunicação e sem precisar mexer um músculo, apenas os dedos.

Mas foi então, que a minha empresa resolveu criar o seu próprio grupo: e foi aí que as coisas ficaram estranhas pela segunda vez.

Eu já era usuário há anos, mas até o início da Pandemia de 2020, talvez não percebesse tanto os malefícios que isso me trazia e foi, no âmbito profissional, considerando que eu seja apenas um assalariado de uma empresa qualquer, que passei a notar isso de forma mais acentuada.

Falando mais um pouco de história, lembro que logo no início da Revolução Industrial, após 12 ou 14 horas de jornada, os trabalhadores ainda deviam ficar alertas à sirene da fábrica: caso ela tocasse, eles eram obrigados a irem a seus postos imediatamente, o que gerava grande ansiedade e tensão nestas pessoas, pois a sirene poderia tocar a qualquer momento e eles estavam sempre de prontidão.

Hoje, a sirene está em nossas mãos: é a notificação de uma nova mensagem, um novo e-mail. Tenho a nítida impressão de que já acordo trabalhando e de que fico produzindo até a hora de dormir. Me mantenho sempre alerta a uma nova mensagem, a uma nova urgência (dos outros) que eu tenha que resolver, sendo que nenhum destes outros fazem ideia – ou simplesmente não se importam – sobre quais sejam as minhas reais urgências.

Se há três séculos, a possibilidade de desligamento, o direito ao ócio e as jornadas exaustivas foram alguns dos fatores que motivaram uma série de movimentos de onde brotaram os mais básicos direitos trabalhistas, hoje percebo que meu direito ao desligamento foi retirado pela forma como nós, enquanto sociedade, utilizamos o WhatsApp, em excesso.

Estamos usando, estamos conectados 24 horas por dia, todos os dias da semana: e isso é demais, isso traz esgotamento principalmente mental, mas também físico, outras características das dependências químicas.

O home office, realidade trazida para muitos após o início da Pandemia, intensificou a (suposta) necessidade das empresas em utilizarem o WhatsApp ao mesmo tempo em que colocou seus funcionários sob constante alerta: tudo se mistura, a empresa virou a casa, a casa virou a empresa, o quarto virou escritório e uma notificação, um e-mail que você não responda imediatamente, pode dar a entender que você é um péssimo profissional, que você estava errado por estar tomando banho naquele momento, que você estava errado por ter sono. É olho no relógio, nas redes sociais, numa mensagem à noite, na madrugada: não se escova mais os dentes sem que já se veja que há mil coisas para se resolver, mensagens a se responder.

Médicos sabem a quantia necessária para se ter uma overdose de cocaína, por exemplo, mas será que conseguiremos, algum dia, calcular a dose de informações a que somos expostos para termos uma relação mais saudável com essas tecnologias?

Ou será que este novo vício, que sei que você também tem em maior ou menor grau, só terá seus efeitos estudados daqui a 20, 30 anos, quando novas patologias tiverem surgido a partir destes comportamentos, quando, de certa forma, o sistema de muitos já tiver bugado?

Será que vão se criar grupos de autoajuda para viciados em WhatsApp no próprio WhatsApp? Isso, o futuro dirá. Por enquanto, copie o link deste texto, compartilhe nos seus grupos de Whats, nas suas redes sociais, bote um sorriso de emoji amarelo no rosto e vamos seguir fingindo que está tudo bem e que a sociedade está em um relacionamento saudável com essas novas tecnologias.

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