Só no Brasil

Temos uma piada interna aqui na agência que é “só no Brasil”.

Surgiu nem sei há quantos anos como forma de implicar, brincar e questionar o discurso de muitos de que “só no Brasil” acontecem certas coisas.

Antes, a brincadeira geralmente opunha-se a frases do tipo: “só no Brasil tem corrupção”; “só no Brasil os impostos são mal investidos”; “só no Brasil a justiça não funciona” e tantas outras situações que é notório não ser verdade, não se tratarem de fatos exclusivos do Brasil.

As exclusividades generalistas nunca eram pro “lado bom”, nunca era “só no Brasil tem um povo tão solidário”; ou “só no Brasil tem tais paisagens” e etc., era sempre mostrando aspectos negativos do país e de seu povo.

Agora, ainda em meio à pandemia e escrevendo de casa com dúvida se seria certo falar no início do texto “aqui na agência”, percebemos que neste aspecto pandêmico, nos foi tirada a possibilidade de questionar brincando: “será que é mesmo só no Brasil?”, pois percebemos que, realmente, a forma peculiar que só o Brasil tem lidado com o coronavírus, não encontra exemplos no mundo em diversas situações.

A primeira e mais evidente, é que não temos ministro da saúde.

Só no Brasil se lida com uma crise sanitária sem ter um chefe para responder sobre as decisões e orientar a sua equipe. Nenhum outro país no mundo ficou sem ministro da saúde por tanto tempo, havendo ao menos outros 09 exemplos de países onde estes foram trocados, mas em todos, prontamente substituídos.

Só no Brasil, as lives fazem tanto sucesso. Já falamos sobre isso aqui, mas se percebe, observando principalmente os Estados Unidos, que as lives não se tornaram moda, ao menos não no mesmo formato e com a mesma intensidade que se tornou um produto cultural para os brasileiros quarenteners.

Só no Brasil, os médicos seguem recomendando um tratamento que teve sua eficácia descartada pela Organização Mundial da Saúde. Não vamos explicar como se chegou a até esse ponto, mas cabe dizer, se o leitor não vê as notícias, de que até o presidente, diagnosticado com o vírus, se trata e faz propaganda para um remédio que comprovadamente não funciona para esta doença.

Comparando ao mundo, sobre isso cabe dizer que o presidente dos EUA havia sido o primeiro a defender publicamente a utilização deste remédio, mas que pouco tempo depois, ele também abandonou esta ideia, ainda que ele próprio detenha “pequena parte” de uma das empresas que produz este medicamento, e que, outra comparação, seria com a Venezuela, onde o presidente também defendeu e abandonou esta ideia.

Só no Brasil se fala sobre flexibilizar uma quarentena que nunca existiu. À exceção de poucos municípios que decretaram o lockdown por determinado tempo, a grande parte do Brasil sequer faz ideia do que seja uma quarentena verdadeiramente restritiva, como a que houve na Itália, Espanha, em regiões dos EUA, da China e em boa parte da Europa e da Índia.

A isso, pode se argumentar “também houveram outros países que não fizeram quarentena”. É verdade, porém, nestes países não se percebe o discurso de abandonar algo que nunca existiu. Se reconhece que a quarentena não foi feita aos moldes clássicos e sim, de que ela já nasceu flexibilizada, o que não ocorre aqui, onde há um equívoco sobre a distinção entre isolamento/ distanciamento social e quarentena restritiva.

Poderíamos cair em algumas generalidades que talvez sejam verdades, como: “só no Brasil houve a crise política entre os três poderes”; “só no Brasil, as pessoas levaram meses para receber a assistência financeira governamental”; “só no Brasil, foi vetado o uso obrigatório de máscaras em espaços públicos”; e algumas outras que sabidamente não são verdades, mas que tem pipocado por aí, como  “só no Brasil, as pessoas não sabem usar máscaras”; ou “só no Brasil voltaram a lotar os bares após a reabertura” ou aquela mais “cachorra” de todas de que “só no Brasil, as pessoas moram aglomeradas”.

Perceba a diferença entre os dois conjuntos de afirmações e aqui já deixamos uma pitada sobre o que possivelmente será o próximo texto publicado aqui, falando sobre as fake news: no primeiro conjunto, não podemos afirmar com certeza que seja só no Brasil onde isso ocorreu devido à falta de pesquisa aprofundada nos demais países; Já no segundo grupo de afirmações, todas reais e retiradas das redes sociais, podemos afirmar com categórica certeza de que não são verdades e se percebe que aqueles defensores do discurso de que falávamos lá no início, aqueles que diziam que a corrupção só havia no Brasil, por exemplo, é o mesmo que utiliza hoje, informações como esta pra desqualificar e subjugar o nosso povo.

O fato é que realmente, só o Brasil tem o jeitinho brasileiro de se lidar com cada situação. Das micropolíticas individuais do dia a dia, como usar ou não a máscara, até as macropolíticas, como não termos um ministro da saúde até agora, os brasileiros vão aprendendo a se virar frente a tudo isso, a todo pandemônio que a falta de gestão em saúde pública coloca o país neste momento.

Infelizmente, a brincadeira interna parece ter perdido a graça por toda a realidade externa. E pior: com tudo o que está acontecendo, a frase “só no Brasil” pode acabar dando lugar para a frase “o Brasil está só”.

As lives, a tribalização do mundo e a saúde mental

Há um sociólogo contemporâneo chamado Michel Maffesoli, que escreveu em 1992, uma obra traduzida em português com o título: A Transfiguração do político – a tribalização do mundo.

No final do século XX, ele percebia muitas características que viriam a ser a base, quase que a espinha dorsal dos cidadãos vivendo em sociedade no século posterior, a suposta pós-modernidade, em especial aqueles indivíduos das chamadas gerações Y e Z, já mais propensos a familiaridades com novas tecnologias.

Suas reflexões inspiraram centenas de outras obras mundo afora, incluindo as análises de sociedade líquida defendidas por Bauman, a partir de 2000, que também tanto falam sobre quem somos hoje e porquê a sociedade e os indivíduos são da forma em que estão.

Em resumo ordinário de uma das ideias centrais desta obra-prima sociológica, e já puxando para o nosso atual contexto pandêmico, ele diz que a força do relacionamento entre os indivíduos para formarem as suas tribos, ou seja, pertencerem a um grupo, não mais estaria em sua localização, como no passado, mas sim, em seus interesses, seus gostos e/ou comportamentos manifestados e mediados pela internet.

Perceba que muito antes, já se dizia das “tribos urbanas”, os hippies podendo ser um belo e distante exemplo, que se juntavam pela afinidade em prol de determinado objetivo, mas que viam a necessidade de estarem juntos fisicamente para compartilharem experiências e sentirem-se integrados.

E as tecnologias, em especial a internet, colocaram isso em outro patamar: o sentido de “estar junto” foi transfigurado para a realidade pós-moderna e não mais passou a ser necessária a presença real, lado a lado, para que o indivíduo identifique que ele está acompanhado.

Se não “acompanhado”, no mínimo, que não está sozinho, o que faz toda a diferença quando se olha sob um aspecto psicológico. E é aqui, que entra a importância das lives para a saúde mental em meio a este momento da pandemia do coronavírus.

É lógico que a sanidade não depende de assistir a alguns shows ao vivo, mas diz-se aqui que esta noção de pertencimento, o sentido de estar vendo e fazendo as mesmas coisas que milhares de outras pessoas no mesmo momento, traz a noção de que se está acompanhado mesmo que se esteja sozinho.

Esta noção de pertencer a um grupo e sentir-se realizado por isso, já indo de encontro à ideia de outro autor chamado Maslow, que desenvolveu a pirâmide das necessidades humanas, é fundamental para se conseguir um equilíbrio emocional.

O indivíduo busca formas de satisfazer as suas necessidades, sendo a de sociabilidade uma delas, e neste contexto de isolamento social, onde se sabe que o ideal para preservar a saúde física é cumprir o distanciamento de aglomerações, as lives vêm possibilitando a integração e o compartilhamento de experiências simultâneas para estes determinados grupos.

Cabe lembrar de outra ideia do Maffesoli que caracteriza a sociedade em tribos, que é o imediatismo, a vontade de ter tudo aqui e agora e, de fato, com computadores e celulares sempre à mão, sabemos que conseguimos.

Se ele havia dito que “somente o presente vivido aqui e agora com os outros importa”, isto é facilmente aplicável à relação entre lives, tribos e saúde mental, ao modo em que elas são vídeos ao vivo trazendo uma experiência individual, mas compartilhada, para milhares de pessoas nas mais diversas partes do mundo, unindo todas elas naquilo que poderia se chamar de “tribo das lives”.

Se num mundo analógico (ou pré-pandêmico) estar num show simbolizava uma multidão de pessoas aglomeradas com música muito alta, agora num mundo digital das lives (ou ainda pandêmico), o som é o mais alto que a caixinha de som ou o volume da TV pode suportar e as companhias tendem a ser aquelas pessoas que se vê todos os dias, podendo dançar apenas na sala e não mais nos salões.

Até podem mudar as formas de se dançar, cantar, se distrair, fazer parte de um grupo, “estar junto” mesmo que não fisicamente, consumir os mais diversos tipos de cultura e saber que não se está sozinho, mas tudo isso sempre será fundamental para o equilíbrio emocional e a preservação da saúde mental.